E conforme o tempo vai passando, conforme o relógio egocêntrico
dá voltas ao redor de si mesmo, Arthur vai ficando cada vez mais
nervoso. Suas mãos vão ficando cada vez mais suadas e sua
garganta cada vez mais seca. O momento está chegando. Não tem
como escapar. Daqui a pouco é a sua vez. Daqui a pouco a coordenadora
acaba de fazer o seu discurso horrivel e repetitivo e aí é a vez
dele. Tudo que ele tem que fazer é ler o discurso escrito. Ele
está no terceiro ano do colegial e esse é o dia de sua formatura.
Ele foi escolhido pela turma para ser o orador. Ele vai se arrependendo a cada
segundo de ter aceitado tal proposta. Ele percebe que na verdade foi um erro
enorme ter sequer começado a pensar em fazer alguma coisa em sua
formatura que não fosse ficar sentado no fundo só esperando a
cerimônia acabar. Ele quer sair dali, quer correr para o final de tudo
aquilo e comer canapés tomando cidra barata e tirando fotos
constrangedoras. E o tempo, que sabe curar tão bem quanto sabe nos
torturar, vai acelerando. E Arthur está prestes a desmaiar de nervoso. E
todo já começam a olhar para ele com uma certa curiosidade sobre
o que está por vir. Ele queria levantar e dizer a todos : "Desculpem-me!
Não quero ser orador! Nunca quis ser orador!"...Mas é tarde
demais. A coordenadora abacou de chamar o seu nome.
Arthur se levanta. Suas pernas tremem, seu coração se arrepende.
Ele pega aquele discurso enorme de mais de 10 paginas e anda em
direção ao microfone,sentindo-se um herege que vai à
fogueira por livre e espontânea vontade. Ele olha novamente para o
discurso. O discurso não é dele, inclusive. O discurso é
do seu amigo, César, que está sentado lá no fundo,
igualmente morrendo de vergonha. César gostaria de ler aquele discurso
que ele fez com tanto carinho. Mas César não pode. Ou pelo menos
acha que não pode. Ele é gago e tem uma voz muito rouca e
não consegue falar alto. Teve uma infecção nas cordas
vocais quando pequeno, e isso prejudicou sua fala. Arthur, por outro lado, tem
um belíssimo vozeirão e uma retórica fantástica.
Ambos se complementam muito bem.
E lá está Arthur, nervoso, arrependido, acuado, assustado...Mas
está lá, de qualquer forma. Ele pensa que aquilo pode ser como
uma injeção. Basta ele colocar sua mente em outro lugar enquanto
tudo acontece. Quando vir, já terá acabado e ele estará
livre como nunca esteve antes. Não só do discurso, mas da
própria escola. Então, é a última vez que ele tem
que sofrer por causa de tudo aquilo.
Ele olha para o público, o público olha para ele de volta. Eles se
encaram, se negam, se aceitam. Ele olha para o papel....Se aproxima do
microfone e fala com a voz trêmula:
-Boa noite.
Vamos recapitular. Arthur está em sua formatura e está muito nervoso. O
texto em sua mão foi escrito pelo seu amigo César, o garoto que escreve
bem. Ele, Arthur, tem uma belíssima voz e uma ótima eloquencia. Seu
amigo, César, o autor do texto, tem algumas sérias dificuldades para
falar. Eles se uniram e fizeram essa produçãopara marcar o fim de sua
carreira escolar.
Eles não sabem de uma coisa, porém.
Eles não sabem que esse discurso que Arthur acabou de começar a ler vai
ser considerado o maior discurso da história da humanidade.
É isso mesmo, leitor(a)
Não estou brincando. Esse discurso vai marcar a história para sempre.
Vai ser maior do que qualquer escrita feita por qualquer homem até
então. As pessoas no futuro duvidarão da existencia de César. Falarão
que ele era somente um personagem ao qual se atribuiu a autoria do
"Discurso". César está prestes a ser considerado o maior escritor de
todos os tempos. Todos os próximos textos escritos pelo ser humano
terão o texto de César como referência. Ele e Arthur vão ser os homens
mais importantes de toda a história da humanidade. Arthur será
considerado até o fim dos tempos como o maior orador de todos. Esse
momento é o mais significativo que já houve de todos os séculos. É
quando o maior orador de todos os tempos leu o texto do maior escritor
de todos os tempos. Todos que estão presentes na formatura serão
considerados seres abençoados, quase que apóstolos desses dois deuses
que são Arthur e César. Muitos no futuro dirão que eles na verdade eram
mesmo deuses, e que seus colegas eram anjos. Muitos acreditarão nas
verdades de César e de Arthur e orarão para eles, farão sacrifícios e
guerras em seus nomes. Muitas canções serão feitas, muitas homenagens.
O calendário será contado a partir dessa data da formatura. Tudo
mudará. Alguns dirão que César se tornou, junto de Arthur, o deus mais
importante de todo o céu. Ele que reina agora, e reinará divinamente
com justiça por milhares de anos.
Eles não sabem disso, mas estão no exato e único momento no qual toda
a humanidade que está por vir gostaria de estar. O momento que será
dito no futuro como algo alegórico, pois na verdade dirão que eles nem
eram contemporâneos.
Arthur e César não sabiam disso, porém. E arthur estava lendo o texto, o tal discurso, o lendário, que era assim:
-Boa noite, Senhoras e senhores....
ESPERA AÍ! EU NÃO ACHO QUE ESSA HISTÓRIA TEM QUE SER CONTADA POR VOCÊ, SENHOR "NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA"
Perdão? Nossa, me perdoe,
leitor(a). É o Arthur, o personagem da minha ficção, que está invadindo
a minha obra literária. Enfim, continuando. Arthur está lá, nervoso,
lendo o discurso...
ESCUTA AQUI, SENHOR NARRADOR EM
TERCEIRA PESSOA, EU SOU O ARTHUR, EU SEI O QUE ACONTECEU E ACHO QUE
VOCÊ ESTÁ CONTANDO A HISTÓRIA DE MANEIRA COMPLETAMENTE ERRADA E
PRECIPITADA. NINGUÉM VAI ENTENDER NADA SOBRE O DISCURSO SE VOCÊ COMEÇAR
FALANDO O DISCURSO EM SI! VOCÊ TEM QUE CONTAR DIREITO!
Olha, você aí que está
lendo, me perdoe mesmo. Você sabe que eu sou o narrador, mas é que esse
arthur está me enchendo o saco! Só um instante, vou falar com ele (Por
favor leitor, desconsidere essa discussão)
Então, senhor "NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA", aqui estou, eu Arthur, o
personagem, falando em seu livro. E olha só, eu roubei a sua letra.
Como você fez isso??? Ah, que absurdo! Vou escrever outro livro então!
Não, narrador idiota, pare com isso. Você sabe que é essa a história que você está louco para contar.
Sim, de fato eu quero muito contar essa história. Mas você não pode roubar a minha narrativa! Eu sou um narrador Onisciente!
Ah, cale essa boca, você não é onisciente! Nenhum narrador é
onisciente! O narrador é o que menos sabe sobre as coisas, ele só finge
que sabe para impressionar os que estão lendo. Olha só o Pessoa por
exemplo, cheio dos heterônimos...Ele era o cara perdido ali naquele
monte de poesia! Narradores nunca sabem de nada. Eles escrevem só
porque assim talvez eles aprendam alguma coisinha que seja sobre eles
mesmos.
Nossa Arthur, não acredito que você está me desconsiderando assim. Eu que inventei você, eu que sou o narrador!
Não é bem assim! Eu ganhei vida própria e agora não adianta ficar
choramingando. Se você quer que o seu público entenda a história e
entenda o discurso, deixa que eu conto! eu estava lá, eu vivi tudo
aquilo, eu senti tudo aquilo. Eu sei como explicar.
...Tá bom então Arthur! Conta para eles, rouba a minha autoria! Eu
nunca fui bom em escrever romances mesmo.... E Leitor(a), novamente me
desculpe, mas não vou conseguir te contar da minha forma. Ok, vou indo.
Já vai tarde viu!
Então gente, olá, eu sou o Arthur, o novo narrador de vocês. Eu vou
contar essa história em primeira pessoa, porque é assim que a gente
vive...Em primeira pessoa.
Para vocês entenderem o porquê do discurso ter sido tão importante,tão
grandioso vocês tem que entender quem era o César. Mas, para entenderem
o César, vocês vão ter que entender a minha relação com ele. E para
entenderem isso, vocês tem que me entender. E para me entender, vocês
tem que entender o que aconteceu comigo naquele colégio.
A escola do bairro quadriculado. CAP 1
Aquela escola era uma maluquice. Ah, antes da escola, deixa eu me
apresentar...Eu sou Arthur, um garoto qualquer em um mundo de ficção.
Ah, não olhe para mim como se eu existisse menos do que vocês! Odeio
isso! Eu estou sim preso em um livro. Mas vocês estão presos na própria
vida. No livro, não existem limites. Eu posso voar, posso virar um
dragão, uma ave, um pote de ouro....Eu na verdade sou muito mais
existente do que vocês. Eu posso ser quem eu quiser. A história é minha
agora. Eu posso mentir, posso jogar com vocês, posso induzir vocês ao
erro, posso mexer com vossas emoções. E ninguém pode me culpar, pois eu
sou ficção, não é mesmo? E vocês? São o que? Presos em um livro, presos
em um horário, presos em um determinado tempo na história....Vocês são
ridículos!
Vocês estão lendo algo que nem existe de fato! (Ou será que existe?)
Vocês leem ficções já que a vida de vocês é sem graça e o tempo tem que
passar. Enfim, sem mais delongas, agora que vocês entenderam o quanto
eu sou mais livre do que vocês, vou começar a bagunçar suas mentes, e
fazer com que vocês se arrependam de um dia terem sido alfabetizados.
Ler é uma desgraça. Ficcionar é uma desgraça. Bom mesmo é ser como eu,
desprendido de qualquer lei. Pobres leitores! Pobres leitores!
quarta-feira, 18 de junho de 2014
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