quarta-feira, 18 de junho de 2014

começo do livro

E conforme o tempo vai passando, conforme o relógio egocêntrico dá voltas ao redor de si mesmo, Arthur vai ficando cada vez mais nervoso. Suas mãos vão ficando cada vez mais suadas e sua garganta cada vez mais seca. O momento está chegando. Não tem como escapar. Daqui a pouco é a sua vez. Daqui a pouco a coordenadora acaba de fazer o seu discurso horrivel e repetitivo e aí é a vez dele. Tudo que ele tem que fazer é ler o discurso escrito. Ele está no terceiro ano do colegial e esse é o dia de sua formatura. Ele foi escolhido pela turma para ser o orador. Ele vai se arrependendo a cada segundo de ter aceitado tal proposta. Ele percebe que na verdade foi um erro enorme ter sequer começado a pensar em fazer alguma coisa em sua formatura que não fosse ficar sentado no fundo só esperando a cerimônia acabar. Ele quer sair dali, quer correr para o final de tudo aquilo e comer canapés tomando cidra barata e tirando fotos constrangedoras. E o tempo, que sabe curar tão bem quanto sabe nos torturar, vai acelerando. E Arthur está prestes a desmaiar de nervoso. E todo já começam a olhar para ele com uma certa curiosidade sobre o que está por vir. Ele queria levantar e dizer a todos : "Desculpem-me! Não quero ser orador! Nunca quis ser orador!"...Mas é tarde demais. A coordenadora abacou de chamar o seu nome.

Arthur se levanta. Suas pernas tremem, seu coração se arrepende. Ele pega aquele discurso enorme de mais de 10 paginas e anda em direção ao microfone,sentindo-se um herege que vai à fogueira por livre e espontânea vontade. Ele olha novamente para o discurso. O discurso não é dele, inclusive. O discurso é do seu amigo, César, que está sentado lá no fundo, igualmente morrendo de vergonha. César gostaria de ler aquele discurso que ele fez com tanto carinho. Mas César não pode. Ou pelo menos acha que não pode. Ele é gago e tem uma voz muito rouca e não consegue falar alto. Teve uma infecção nas cordas vocais quando pequeno, e isso prejudicou sua fala. Arthur, por outro lado, tem um belíssimo vozeirão e uma retórica fantástica. Ambos se complementam muito bem.
E lá está Arthur, nervoso, arrependido, acuado, assustado...Mas está lá, de qualquer forma. Ele pensa que aquilo pode ser como uma injeção. Basta ele colocar sua mente em outro lugar enquanto tudo acontece. Quando vir, já terá acabado e ele estará livre como nunca esteve antes. Não só do discurso, mas da própria escola. Então, é a última vez que ele tem que sofrer por causa de tudo aquilo.

Ele olha para o público, o público olha para ele de volta. Eles se encaram, se negam, se aceitam. Ele olha para o papel....Se aproxima do microfone e fala com a voz trêmula:
-Boa noite.

Vamos recapitular. Arthur está em sua formatura e está muito nervoso. O texto em sua mão foi escrito pelo seu amigo César, o garoto que escreve bem. Ele, Arthur, tem uma belíssima voz e uma ótima eloquencia. Seu amigo, César, o autor do texto, tem algumas sérias dificuldades para falar. Eles se uniram e fizeram essa produçãopara marcar o fim de sua carreira escolar.
Eles não sabem de uma coisa, porém.
Eles não sabem que esse discurso que Arthur acabou de começar a ler vai ser considerado o maior discurso da história da humanidade.
É isso mesmo, leitor(a)
Não estou brincando. Esse discurso vai marcar a história para sempre. Vai ser maior do que qualquer escrita feita por qualquer homem até então. As pessoas no futuro duvidarão da existencia de César. Falarão que ele era somente um personagem ao qual se atribuiu a autoria do "Discurso". César está prestes a ser considerado o maior escritor de todos os tempos. Todos os próximos textos escritos pelo ser humano terão o texto de César como referência. Ele e Arthur vão ser os homens mais importantes de toda a história da humanidade. Arthur será considerado até o fim dos tempos como o maior orador de todos. Esse momento é o mais significativo que já houve de todos os séculos. É quando o maior orador de todos os tempos leu o texto do maior escritor de todos os tempos. Todos que estão presentes na formatura serão considerados seres abençoados, quase que apóstolos desses dois deuses que são Arthur e César. Muitos no futuro dirão que eles na verdade eram mesmo deuses, e que seus colegas eram anjos. Muitos acreditarão nas verdades de César e de Arthur e orarão para eles, farão sacrifícios e guerras em seus nomes. Muitas canções serão feitas, muitas homenagens. O calendário será contado a partir dessa data da formatura. Tudo mudará. Alguns dirão que César se tornou, junto de Arthur, o deus mais importante de todo o céu. Ele que reina agora, e reinará divinamente com justiça por milhares de anos.

Eles não sabem disso, mas estão no exato e único momento no qual  toda a humanidade que está por vir gostaria de estar. O momento que será dito no futuro como algo alegórico, pois na verdade dirão que eles nem eram contemporâneos.
Arthur e César não sabiam disso, porém. E arthur estava lendo o texto, o tal discurso, o lendário, que era assim:
-Boa noite, Senhoras e senhores....

ESPERA AÍ! EU NÃO ACHO QUE ESSA HISTÓRIA TEM QUE SER CONTADA POR VOCÊ, SENHOR "NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA"

Perdão? Nossa, me perdoe, leitor(a). É o Arthur, o personagem da minha ficção, que está invadindo a minha obra literária. Enfim, continuando. Arthur está lá, nervoso, lendo o discurso...

ESCUTA AQUI, SENHOR NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA, EU SOU O ARTHUR, EU SEI O QUE ACONTECEU E ACHO QUE VOCÊ ESTÁ CONTANDO A HISTÓRIA DE MANEIRA COMPLETAMENTE ERRADA E PRECIPITADA. NINGUÉM VAI ENTENDER NADA SOBRE O DISCURSO SE VOCÊ COMEÇAR FALANDO O DISCURSO EM SI! VOCÊ TEM QUE CONTAR DIREITO!

Olha, você aí que está lendo, me perdoe mesmo. Você sabe que eu sou o narrador, mas é que esse arthur está me enchendo o saco! Só um instante, vou falar com ele (Por favor leitor, desconsidere essa discussão)

Então, senhor "NARRADOR EM TERCEIRA PESSOA", aqui estou, eu Arthur, o personagem, falando em seu livro. E olha só, eu roubei a sua letra.

Como você fez isso??? Ah, que absurdo! Vou escrever outro livro então!

Não, narrador idiota, pare com isso. Você sabe que é essa a história que você está louco para contar.

Sim, de fato eu quero muito contar essa história. Mas você não pode roubar a minha narrativa! Eu sou um narrador Onisciente!

Ah, cale essa boca, você não é onisciente! Nenhum narrador é onisciente! O narrador é o que menos sabe sobre as coisas, ele só finge que sabe para impressionar os que estão lendo. Olha só o Pessoa por exemplo, cheio dos heterônimos...Ele era o cara perdido ali naquele monte de poesia! Narradores nunca sabem de nada. Eles escrevem só porque assim talvez eles aprendam alguma coisinha que seja sobre eles mesmos.

Nossa Arthur, não acredito que você está me desconsiderando assim. Eu que inventei você, eu que sou o narrador!

Não é bem assim! Eu ganhei vida própria e agora não adianta ficar choramingando. Se você quer que o seu público entenda a história e entenda o discurso, deixa que eu conto! eu estava lá, eu vivi tudo aquilo, eu senti tudo aquilo. Eu sei como explicar.

...Tá bom então Arthur! Conta para eles, rouba a minha autoria! Eu nunca fui bom em escrever romances mesmo.... E Leitor(a), novamente me desculpe, mas não vou conseguir te contar da minha forma. Ok, vou indo.

Já vai tarde viu!

Então gente, olá, eu sou o Arthur, o novo narrador de vocês. Eu vou contar essa história em primeira pessoa, porque é assim que a gente vive...Em primeira pessoa.
Para vocês entenderem o porquê do discurso ter sido tão importante,tão grandioso vocês tem que entender quem era o César. Mas, para entenderem o César, vocês vão ter que entender a minha relação com ele. E para entenderem isso, vocês tem que me entender. E para me entender, vocês tem que entender o que aconteceu comigo naquele colégio.


A escola do bairro quadriculado. CAP 1

Aquela escola era uma maluquice. Ah, antes da escola, deixa eu me apresentar...Eu sou Arthur, um garoto qualquer em um mundo de ficção.
Ah, não olhe para mim como se eu existisse menos do que vocês! Odeio isso! Eu estou sim preso em um livro. Mas vocês estão presos na própria vida. No livro, não existem limites. Eu posso voar, posso virar um dragão, uma ave, um pote de ouro....Eu na verdade sou muito mais existente do que vocês. Eu posso ser quem eu quiser. A história é minha agora. Eu posso mentir, posso jogar com vocês, posso induzir vocês ao erro, posso mexer com vossas emoções. E ninguém pode me culpar, pois eu sou ficção, não é mesmo? E vocês? São o que? Presos em um livro, presos em um horário, presos em um determinado tempo na história....Vocês são ridículos!
Vocês estão lendo algo que nem existe de fato! (Ou será que existe?) Vocês leem ficções já que a vida de vocês é sem graça e o tempo tem que passar. Enfim, sem mais delongas, agora que vocês entenderam o quanto eu sou mais livre do que vocês, vou começar a bagunçar suas mentes, e fazer com que vocês se arrependam de um dia terem sido alfabetizados. Ler é uma desgraça. Ficcionar é uma desgraça. Bom mesmo é ser como eu, desprendido de qualquer lei. Pobres leitores! Pobres leitores!

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