quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Somente tranquilos

Dois homens muito amigos jogavam cartas silenciosamente. Muito amigos mesmo. Jogavam cartas no silêncio da madrugada, no barulho entorpecente (e silencioso) da chuva torrencial. Não lembro exatamente onde estavam. Provavelmente no interior de alguma cidade no fim do mundo. Acendem cigarros, apagam esperanças. Não se sentem incomodados. Somente tranquilos. Eis que se entreolham, e um deles fala:

-Então Jeremias, eu não tinha outro jeito de falar isso mas...

Davi, o tal dono da fala, fica olhando com muita estranheza. Jeremias rapidamente rebate;
-Não estrague nosso jogo! Cale a boca e simplesmente jogue.

-Não tenho como jogar sem te falar isso.

-Jogue! Apenas jogue. Não tens nada a fazer. Disso você bem sabe.

-Não quero mais ter que me importar com o futuro.

Eis que Davi puxa uma arma do bolso da roupa de bombeiro, que ele gostava de usar.

-Veja isso, que linda. Uma Magnum. Me mataria com 1 tiro até no pé.
-Realmente é muito bonita.
-Não sabe para que eu vou usá-la...
-Claro que sei...
-Claro que NÃO !
-Vai usar para se matar. Vai se matar, e fazer um discurso idiota todo cheio das melosidades sobre a vida e morte.
-Como...
-O que mais eu poderia esperar de um homem de 53 anos que vive sozinho desde a infância? Não acho que você quer ajudar o mundo de verdade. Vejo você como o homem que faz do bem sua morfina para não sentir a dor da própria existência. Não acho que você seja bombeiro porque realmente quer ajudar ao mundo. Não acho também que você esteja satisfeito com sua vidinha de merda. Sem um pingo de erros ou tentativas para se arrepender. Não quer arriscar nunca. Nem nas cartas. E agora vai explodir os miolos na minha frente e achar que isso vai te libertar. Na verdade, você continua sendo o mesmo merdinha de sempre. Só que morto, você só não se lembra de ter sido um. Deve ser um alívio, mas não te faz melhor ou pior ou simplesmente puro. Te faz idiota como em todos os dias de sua mísera vida.

-Nossa jeremias..Como você consegue...

-Não se impressione. Jogamos cartas todas as noites há 25 anos. E Hoje é meu aniversário. E mais nada fazemos. E você quer vir com papinho de morte, só pra ter alguem abalado que lembrou de você...Mas eu não vou lembrar..

-Jeremias...

-Você é um merda covarde e insignificante. Um pobre coitado. Um completo imbecil que cava o próprio buraco.

-Não Jeremias...

-Não o que?? VocÊ me contesta com quais palavras? Covarde. Homem morto. Se matar só te fará ser morto no papel. Você já morreu há muito tempo. Desde que olhou para a vida e viu que não valia a pena ser vivida.

-JEREMIAS!!!

Davi levanta com a arma, e encosta-a na cabeça do companheiro

-Jeremias, não vim me matar na sua frente...

-Veio fazer o que então?

-O que pareCE? Dê um palpite...

Jeremias começa a ficar levemente assustado com a situação.

-Parece que você vai dá-la de presente a mim...

-Certa resposta...

Davi entrega a arma a Jeremias, que sorri encabulado...Logo em seguida, Jeremias põe a arma na cabeça e pega um coringa.

-Sbe quanto vale o coringa Davi?

-O valor que você quiser...

-Errado... Ele não vale nada..

Jeremias atira em si próprio e quase fica irreconhecível... Seu cérebro se estatela no chão.

Davi olha com um certo descaso, pega a arma e olha para o resto de Jeremias...

-Errado Jeremias. Um coringa vale mais do que tudo.

Outro tiro ecoa na longa noite chuvosa e serena. Os cigarros continuam queimando. As cartas continuam em ordem, e os homens permanecem silenciosos. Não se sentem incomodados. Somente tranquilos...

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